O CONSTRUTOR E A EDIFICAÇÃO DE EFEMERIDADES

não me sinto só, mas as saudades são enormes[1]

Há certos trabalhos de arte que têm como marca a economia: de formas, de materiais , de inscrições, de discurso. Tais trabalhos, ao serem apreciados pelos observadores, costumam demandar ações simbólicas complexas. É necessário tecer os fios do imaginário em torno deles (a partir deles, talvez daquele fio que podemos puxar da superfície que se oferece e se nega ao olhar).

Tenho em minha parede dois pequenos desenhos que estão nessa categoria. Papel branco e inscrição negativa. Me explico: com uma ponta seca (algum instrumento contundente , mas não cortante) o artista arranha a superfície do papel e o rasga. Com seu próprio movimento, o suporte forma pequenas dobras/desenhos que se completam com a falta (do papel que foi rasgado e amassado), completa-se com a sombra, com o furo. Assim, branco no branco, aparecem linhas com valores diferentes, aparecem manchas. Tudo efeito da luz sobre o papel branco rasgado com extrema precisão. Sutil desenho.[2]

O primeiro trabalho de Gustavo ao qual tive acesso tinha o nome de Desejo de Morte. Caixas de concreto semifechadas de onde saia a luz de lâmpadas imersas em parafina. Me impressionaram os elementos icônicos dos rituais de morte associados a uma construção que flertava com o minimalismo . E aquela ideia de algo que encaixotado e enterrado, continuava a fazer-se e desfazer-se, até… o fim da energia. Uma metaforização da morte  com um título paradoxal para um leitor de Freud que, de fato, ele já era. Aquilo convidava a uma leitura pela via de um movimento antitético onde as pulsões se situavam em determinadas posições daquele derreter-se e reconstituir-se.

Esta me parece  a questão que permeia o conjunto de obras  que o artista produziu, incluidas aí algumas em parceria.  Como esquecer aquela galeria praticamente fechada por tijolos, dando-se a ver somente por vislumbres , na instalação que dividiu com Polyanna Morgana, a Fenda construida para (não) ver a galeria?[3]

Este construtor de caminhos/hipóteses do fim (da morte?) retoma a mesma vertente simbólica nos Portais e em uma obra Sem Título , depois refeita com o nome Há um sopro que nunca morre [4]que, embora com alguns anos de diferença parecem construir  uma mesma ideia de dessolidificação das matérias primas construtivas (concreto, cimento, tijolo). Os portais  mantêm a forma tão difundida na cultura, mas são brancos (mais uma vez) e acolchoados e os tijolos que constroem a casa/mausoléu do segundo trabalho são de voile branco costurado em forma de paralelepípedo translucido e costurados para formarem a edificação (paredes que atravessamos com o olhar). Lembro que na montagem dessa obra na mostra Situações Brasilia (na qual dividi a curadoria com Evandro Salles e Elder Rocha), na grande galeria da Caixa Cutural em Brasília, colocamos este trabalho em diálogo com outras duas obras: “O que fazer nas sobras do tempo”de Valéria Pena-Costa – seu enorme vestido de tricô que ia sendo desfeito lentamente por uma pequena máquina, durante a exposição e a instalação de Gê Orthof “Ver-o –(in) ver(no)”  na qual de uma caixa de mármore branco (onde o fruidor posicionava sua cabeça), expandia-se a teia de elementos mínimos por um chão recoberto da branquíssima (e falsa) neve. Ali, a conversa entre as obras tecidas pela expografia parece organizar uma fala que retoma este fio de sentido presente na poética de Gustavo: a beleza disso que é pura efemeridade.

Não posso deixar de pensar que as parcerias de que falo incluem também seu trabalho como produtor e montador de exposições, na Lumen Argo (com Evandro Salles e Daniela Estrella), na Bloco A  (com Daniela) , na NU projetos de arte (com Nathalia Ungarelli) , seus parceiros, e com tantos grandes produtores e espaços culturais que requisitaram seu exercício ‘edificador’. Montar uma mostra é construir uma imensa efemeridade. Gustavo fez isso por anos e , em algumas vezes, tive a oportunidade de presenciar  essa ação (muitas vezes perigosa, pois antes de qualquer coisa, há que se preservar a obra). Há uma alegria em se edificar um mundo dentro do mundo: essa me parece uma boa metáfora para uma exposição de arte. Gustavo sabia disso. Vivia essa alegria, em paralelo à produção de sua própria poética.

Depois de sua morte, um dia em que fui visitar Daniela na nova sede da Bloco A, revi uma pintura de Gustavo, da qual gosto muito. Ela estava lá, presidindo o novo espaço: uma tela quadrada  com um fundo cru em cujo centro está ‘pousada’ uma pequena árvore feita com algo que sempre leio como limalha de ferro totalmente oxidada (nunca perguntei a ele sobre o material utilizado). Embora o desenho da árvore seja muito bem definido, ele escorre, enraíza-se na tela, expande sua matéria transformando dali, da pequena superfície que ocupa, o suporte todo. Em minha fantasia com boa probabilidade de não estar distante da realidade, ela continuará transformando a obra.

Este é o TRABALHO da arte.  E do artista, para além de sua morte. Não há como parar aquilo que se vai inoculando nos olhos de quem vê. E Gustavo produziu coisas de ver… mais e mais… Afinal, como aponta a instalação Encarnar do Grupo Entreaberto[5], carne é verbo.

Marília Panitz
fevereiro de 2014

 

 



[1] Retirado da obra “Clark” do Grupo Entreaberto, formado por Gustavo Magalhães, Sabrina Lopes, Teca Santa Cruz  e Polyanna Morgana, que se apropria de um trecho da carta de Lygia Clark para Hélio Oiticica. Na mostra itinerante OBRANOME, 2009;

[2] Deste trabalho de 1999, que em sua completude era um Livro de faltas , de furos na superfície -suporte da poética do artista, ganhei de Gustavo duas folhas que emoldurei em pequenas caixas de madeira e vidro.

[3] Projeto executado na Galeria da UnB, em 2002;

[4] Em 2001, 2005 e 2007 respectivamente.

[5] CAL, 2006.

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